Quando o altar se torna trincheira: intolerância religiosa e o uso indevido do nome de Deus

Ivo Fernandes • 31 de julho de 2025

A fé como trincheira: o perigo do narcisismo religioso

No domingo, 27 de julho de 2025, uma missa celebrada na cidade de Areial, na Paraíba, virou manchete nacional. O padre Danilo César, diante dos fiéis, fez referência à morte de Preta Gil, artista que faleceu dias antes, nos Estados Unidos, vítima de câncer. Sua fala, longe de expressar solidariedade ou compaixão, foi um ataque direto às religiões de matriz africana: “Cadê os orixás que não ressuscitaram Preta Gil?”, indagou, em tom de provocação. A fala gerou indignação e motivou a abertura de um inquérito por racismo religioso.

Este não é apenas mais um caso de intolerância entre tantos outros. É um ato simbólico de violência. Um golpe contra a dignidade humana, a liberdade religiosa e o luto de uma família.


A fé como trincheira: o perigo do narcisismo religioso


Há momentos em que a religião deixa de ser casa de oração e se torna trincheira. Quando isso acontece, o altar é transformado em palanque, o sagrado em julgamento, e Deus em força contra o próximo.


O que vimos no discurso do padre Danilo César é um exemplo claro do narcisismo religioso: a tentativa de sustentar uma fé superior à custa da ridicularização do outro. É a velha tentação de tornar Deus cúmplice das nossas certezas e da nossa necessidade de poder.

Mas Deus não é exclusividade de ninguém. Nem propriedade de uma igreja. Deus é o Mistério que nos escapa, o sopro que atravessa todas as culturas, e não cabe nos limites das doutrinas humanas. Reduzi-lo a um “Deus contra os orixás” é não só teologicamente irresponsável, mas também historicamente perigoso.


O racismo religioso como herança colonial


A zombaria com as religiões de matriz africana, como o candomblé e a umbanda, não pode ser lida apenas como intolerância religiosa. Ela é expressão direta do racismo estrutural que marca a história do Brasil. Desde o período colonial, os corpos negros foram demonizados — e com eles, seus ritos, cantos, deuses e saberes.


Quando um padre questiona “onde estavam os orixás que não ressuscitaram Preta Gil”, ele mobiliza séculos de preconceito e de apagamento simbólico. Ele perpetua a lógica do colonizador que nega o sagrado do outro e usa sua religião para reafirmar um poder autoritário e excludente.


Uma crítica desde a psicanálise


A psicanálise nos ajuda a compreender esse fenômeno para além do discurso religioso. Quando Lacan diz que “o discurso do mestre funda o laço social”, ele nos alerta que toda palavra vinda de uma posição de autoridade tem efeitos — muitas vezes violentos.


O gozo que há em zombar da fé alheia é sintoma de um sujeito que precisa da humilhação do outro para afirmar sua própria identidade religiosa. É também um modo de gozar com o sofrimento alheio, mascarando esse prazer com o nome de “fé”.


Além disso, Freud já havia advertido em O Futuro de uma Ilusão que, muitas vezes, a religião pode operar como defesa contra o desamparo humano — e, nesse movimento, regredir para formas infantis de moralismo, agressividade e negação da alteridade.


Preta Gil e o direito ao sagrado


Preta Gil, em vida, foi mais do que uma artista. Foi mulher, negra, corajosa, espiritualizada, aberta à pluralidade, afirmativa de sua ancestralidade. Fazer de sua morte um exemplo de “fracasso espiritual” é violar seu corpo mesmo após sua partida. É um tipo de necropolítica simbólica: negar à pessoa falecida o direito de ter sido quem foi, de ter crido no que cria, de ser lembrada com dignidade.

A morte deve ser, no mínimo, um tempo de silêncio e respeito. Transformá-la em escárnio público é desonrar não apenas o outro, mas o próprio Evangelho.


Em nome da fé — e da humanidade


Não se trata aqui de atacar a Igreja Católica ou o cristianismo. Trata-se de lembrar que o verdadeiro cristianismo não precisa ridicularizar ninguém para anunciar sua mensagem. Se Deus é amor, não pode ser arma. Se Deus é Pai, não exclui nenhum dos seus filhos. Se Deus é vida, não pode zombar da morte de ninguém.


O que está em jogo não é apenas o que se pode ou não dizer num altar — mas que tipo de sociedade estamos construindo a partir dos nossos símbolos sagrados. O Brasil que queremos é um país de múltiplas vozes, crenças e corpos que coexistem com respeito.


Que cada religião seja uma ponte, e nunca um muro.


Ivo Fernandes


📚 Bibliografia comentada

1. Freud, Sigmund. O Futuro de uma Ilusão. (1927)
Nesta obra clássica, Freud propõe que a religião nasce como um sistema de crenças criado para apaziguar o desamparo humano diante do sofrimento, da natureza e da morte. Critica o uso infantilizado da fé como fuga da realidade e alerta para os perigos do moralismo religioso. Essencial para pensar o modo como líderes religiosos podem se utilizar da religião para negar a alteridade.

2. Lacan, Jacques. O Seminário, Livro 17: O avesso da psicanálise. (1969–1970)
Neste seminário, Lacan apresenta sua teoria dos quatro discursos, entre eles o
discurso do mestre, que ajuda a compreender como autoridades religiosas operam no campo simbólico para manter o poder, inclusive através do silenciamento do outro. O caso do padre pode ser lido como manifestação de um discurso mestre que não tolera o diferente.

3. Mbembe, Achille. Necropolítica. (2011)
Mbembe discute como o poder moderno decide quem deve viver e quem deve morrer. Sua teoria da necropolítica é útil para pensar como certos discursos religiosos legitimam a exclusão simbólica de corpos negros, dissidentes e de outras espiritualidades. A zombaria com Preta Gil pode ser lida como uma forma de necropoder religioso.

4. Ribeiro, Djamila. O que é lugar de fala? (2017)
Djamila oferece uma reflexão clara sobre quem tem legitimidade para falar e sobre o silenciamento histórico de vozes negras. A crítica ao padre passa também pela necessidade de reconhecer o apagamento simbólico das expressões religiosas afro-brasileiras.

5. Gonzalez, Lélia. Por um feminismo afrolatinoamericano. (2018)
Lélia Gonzalez nos ajuda a pensar o entrelaçamento entre racismo, misoginia e religião. Preta Gil, como mulher negra, carrega em seu corpo múltiplas camadas de significado político e simbólico que precisam ser defendidas inclusive após sua morte.

6. Silva, Vagner Gonçalves da. Religião, cultura e conflito: Estudos de antropologia da religião. (2007)
O autor discute os conflitos inter-religiosos no Brasil, especialmente entre religiões afro-brasileiras e cristianismo. Traz uma importante reflexão sobre como a intolerância religiosa se manifesta em discursos cotidianos, como o do padre citado.

7. Boff, Leonardo. Jesus Cristo Libertador. (1972)
Clássico da teologia da libertação, Boff apresenta um Jesus que se coloca ao lado dos marginalizados. Sua leitura desafia qualquer uso da fé que sirva para excluir. Oferece contraponto à instrumentalização do cristianismo para práticas opressoras.

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