Quando o Chão Some

Ivo Fernandes • 6 de junho de 2025

O esgotamento silencioso de quem ainda insiste em educar mesmo quando tudo parece ruir.

Há um cansaço que não é apenas físico. É um cansaço que mora nos olhos, se arrasta nos corredores das escolas, silencia a esperança e endurece os afetos. Um cansaço que nasce da frustração de ensinar sem ser escutado, de preparar aulas que são ignoradas, de insistir em um vínculo que parece não mais encontrar retorno.

Tenho caminhado entre professores — como professor, como gestor e também como psicanalista — e reconheço esse cansaço de longe. É o cansaço de quem já não acredita em fórmulas, de quem já viu muitas promessas falharem. É o cansaço de quem está saturado de solucionadores de problemas que não pisam mais no chão da sala de aula. E diante disso, muitos educadores se retraem, tornam-se reativos, desenvolvem uma postura defensiva: se tudo os culpa, então talvez nada mais lhes caiba fazer.

Mas o silêncio dos alunos também nos atravessa. Há algo de profundamente angustiante em olhar para uma turma e perceber olhos opacos, semblantes desconectados, presenças que não se deixam afetar. Estamos cercados por adolescentes que vivem plugados no mundo, mas desligados de si mesmos. Jovens acelerados pela lógica do “agora”, mas esvaziados de um “porquê”.

E talvez a chave esteja justamente aí: o que parece desinteresse, muitas vezes é apenas um grito mudo. Um corpo que sobrevive, sem saber exatamente por quê. Um sujeito que não encontrou ainda uma linguagem para expressar seu desejo. Em Lacan, aprendemos que quando o Nome-do-Pai falha, o desejo se embaralha. E nossos jovens hoje vivem essa falência simbólica: sem espelhos estáveis, sem limites claros, sem o tempo da espera. Tudo precisa ser imediato. Tudo exige retorno. Eles não sabem mais desejar — apenas consumir.

Nesse cenário, quem ainda ocupa o lugar da escuta? Quem ainda oferece sustentação simbólica?

O professor. Mesmo ferido, mesmo desanimado, o professor ainda é — muitas vezes — a única presença estável em meio ao caos psíquico que muitos estudantes vivem. E isso não é pouco.

O ofício docente deixou de ser apenas transmissão de conteúdo há muito tempo. Hoje, o professor é também psicólogo improvisado, conselheiro involuntário, cuidador silencioso, bombeiro emocional de urgências diárias. E ao final do dia... esgota-se.

Você já deve ter se perguntado: o que mais posso fazer?
Talvez a resposta mais honesta seja: nada. Você não precisa fazer mais. Precisa apenas continuar.

Continuar sendo presença. Continuar sendo um ponto de sentido. Continuar sendo aquele que não desiste, mesmo diante da apatia. Continuar sendo — ainda que cansado — uma referência.

Nietzsche escreveu: “Quem tem um porquê enfrenta qualquer como.” Mas e quando até o “porquê” vacila? Quando a vocação pesa como fardo? Quando o amor vira exaustão?

A resposta talvez não esteja em novos métodos, mas em escutar-se mais e apoiar-se melhor. Nenhum de nós pode sustentar um mundo inteiro sozinho. Por isso, precisamos de redes, de vínculos, de laços entre nós — educadores.

E nunca se esqueça: você faz diferença mesmo quando não percebe. Já ouvi alunos dizerem: “Professor, aquela sua fala me salvou”, e o professor nem lembrava o que havia dito. É que, às vezes, não é o conteúdo. É o gesto. É o olhar. É o cuidado silencioso.

Paulo Freire nos lembra:

“Ninguém educa ninguém. Ninguém se educa sozinho. Os homens se educam em comunhão.”

É nessa comunhão que seguimos, mesmo quando a terra parece seca. Porque o gesto do professor é como o do semeador: ele semeia mesmo quando sabe que a colheita talvez nem lhe pertença.

Se eu pudesse desejar algo a você, professor, seria isso: que você se permitisse também cuidar de si. Que tivesse tempo para não ser apenas função, mas também afeto. Que pudesse chorar sem culpa, descansar sem peso, rir com leveza.

E que nunca, nunca se esquecesse: seu trabalho é sagrado. Porque educar é tocar no mistério da formação do sujeito. É agir no invisível. É transformar mesmo sem controle do resultado.

Você é necessário.
Você é ressignificador de existências.
Você é, antes de tudo, professor.

Ivo Fernandes


Por Ivo Fernandes 28 de maio de 2025
e o silêncio que tentam impor às Mulheres com Voz
Por Ivo Fernandes 2 de maio de 2025
sobre a liberdade de ser
Por Ivo Fernandes 29 de abril de 2025
Análise Temática e de Conteúdo da Prova