O 210º Personagem – Chico Anysio
Um homem à procura de um personagem

Assistir ao documentário “Chico: À Procura de um Personagem” é revisitar não apenas a trajetória de um dos maiores artistas brasileiros, mas adentrar o labirinto interior de um homem que, por meio de 209 criações, buscava incessantemente uma só: a si mesmo.
O 210º personagem — aquele que não foi escrito, nem interpretado, mas vivido — era o próprio Chico. Um homem em permanente construção, oscilando entre a euforia da criação e as contradições inevitáveis do sucesso.
Chico Anysio foi mais que um humorista: foi um intérprete do Brasil. Em cada personagem, condensou camadas da alma nacional. O Professor Raimundo, com seu humor crítico e pedagógico; o político corrupto Justo Veríssimo; o vampiro Bento Carneiro, símbolo do grotesco que insiste em sobreviver; o Bozó, filho da televisão e do sucesso fácil; o Painho, retrato da elite debochada e autoritária do Nordeste.
Em todos eles havia observação social, ironia e ternura. Chico não ria do povo, ria com o povo — e talvez por isso tenha sido tão amado. Seu humor era empático, filosófico e revelador: uma forma de fazer o Brasil se ver no espelho, rindo de si mesmo para suportar suas próprias tragédias. Ele criou 209 personagens oficialmente reconhecidos — uma galeria viva de tipos humanos que contam mais sobre o país do que muitos tratados de sociologia.
O documentário revela o preço da genialidade. Criar tanto é, às vezes, uma forma de se proteger — e, paradoxalmente, de se perder. Sua busca talvez se manifeste não apenas em seus muitos personagens, mas também em seus múltiplos casamentos, filhos e na necessidade constante de afirmação — tanto de sua própria genialidade quanto do valor de seus parceiros de cena.
A criação, para Chico, era um modo de existir. Mas toda criação exige sacrifício. E, como ele mesmo demonstrou, viver é escolher — e toda escolha traz consigo um pedaço de renúncia. Ele viveu intensamente, amou, errou, riu e sofreu — e, nisso, fez-se humano, demasiado humano.
Para Chico, rir era um ato de inteligência. O humor, em sua obra, não era mera distração, mas uma forma de compreender o trágico. Era filosofia disfarçada de piada, espiritualidade travestida de sátira. Seu riso era um modo de pensar o mundo, de suportar o absurdo, de revelar a verdade com doçura. Chico nos ensinou que rir é resistir. Que o riso é o último gesto de liberdade quando tudo parece sério demais. E que o artista, quando verdadeiro, é aquele que nos ajuda a decifrar o humano — inclusive o humano que dói.
O 210º personagem de Chico Anysio não nasceu de um roteiro, nem de uma caricatura. Ele foi vivido — e talvez por isso tenha sido o mais complexo de todos. Era o próprio Chico: um homem em permanente confronto com sua própria grandeza, atravessado pela arte e ferido por ela.
Foi, antes de tudo, um buscador — alguém que fez do humor uma forma de sobrevivência e da criação um modo de existir. Sua vida nos recorda que todos nós, em alguma medida, somos também personagens de nós mesmos — tentando conciliar o que mostramos e o que escondemos, o que criamos e o que realmente somos.
Chico Anysio permanece como um marco da cultura brasileira. Mas, mais do que isso, como um símbolo da alma humana em sua complexidade. Ele nos ensinou que viver é, inevitavelmente, um ato de invenção — e que, entre o riso e o cansaço, ainda vale a pena continuar procurando o personagem que somos.
✍️ Ivo Fernandes
Psicanalista, filósofo e educador
Texto inspirado no documentário “Chico: À Procura de um Personagem” (Globoplay, 2024)