Marina Silva e Leontiona
e o silêncio que tentam impor às Mulheres com Voz

Em meio às recentes cenas lamentáveis protagonizadas por alguns parlamentares brasileiros, o ataque sofrido por
Marina Silva numa comissão parlamentar não é um episódio isolado. É a repetição sistemática de uma prática antiga: atacar mulheres não por suas ideias, mas por sua condição de mulheres que ousam ocupar espaços de poder.
É aqui que a filosofia nos oferece lentes precisas para compreender a cena. Uma questão da Universidade Estadual do Ceará (UECE) traz um trecho de Cícero, o grande orador romano, onde ele desqualifica a filósofa epicurista Leontion. Ela, que ousou criticar o respeitado Teofrasto, é chamada de “meretricula”, uma “prostitutinha”, mesmo tendo escrito — segundo o próprio Cícero — em estilo elegante e em grego ático. A crítica à sua produção intelectual é substituída por um ataque moral à sua figura. Isso tem nome:
falácia ad hominem.
Tal estratégia consiste em desviar o foco do conteúdo da fala para deslegitimar o sujeito que fala. Ao invés de dialogar com a ideia, ataca-se quem a pronuncia — seja por sua origem, seu corpo, sua aparência, seu passado ou, como no caso de Leontion e Marina, por serem mulheres.
Marina Silva é uma das figuras mais respeitadas da política brasileira no cenário internacional. Sua trajetória de superação, saindo do seringal no Acre para se tornar senadora, ministra do meio ambiente, candidata à presidência da República e referência mundial em sustentabilidade, é, por si só, um feito histórico. Mas nem isso tem blindado Marina dos ataques baixos e misóginos que se intensificam especialmente em tempos de avanço da extrema-direita e do reacionarismo político.
Não se critica Marina com argumentos — tentam desqualificá-la por sua forma de ser. Quando fala com firmeza, dizem que “é louca” e que deve “se colocar no seu lugar”. Quando é gentil e ponderada, dizem que “lhe falta testosterona” — e que, por isso, não tem perfil para a política. Quando chora, dizem que é frágil. Quando responde, que é agressiva. Quando se cala, que é submissa. Em qualquer caso, o objetivo é o mesmo:
controlar sua existência política a partir do julgamento de sua performance de gênero.
Esse tipo de ataque não é retórico, é simbólico. Serve para lembrar às mulheres que seus corpos ainda são lidos como estranhos aos espaços de decisão. Serve para manter viva uma masculinidade política que se sente ameaçada sempre que uma mulher não apenas fala — mas fala com autoridade.
Assim como Leontion foi apagada da história da filosofia por meio da difamação, Marina é desautorizada por discursos que não se importam com suas ideias, mas com o incômodo que sua presença gera. Isso mostra que o tempo passou, mas a estrutura simbólica do patriarcado segue agindo nas entrelinhas dos discursos.
É por isso que não basta admirar Marina. É preciso defendê-la. Não apenas ela, mas todas as vozes femininas que se erguem em meio ao barulho machista e tentam ser caladas. A política precisa deixar de ser o clube dos que gritam mais alto e passar a ser o espaço onde se ouve quem tem o que dizer — mesmo quando o tom é doce, firme ou emocionado.
Afinal, como ensinava Simone de Beauvoir: “Basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados”. E, nestes tempos, a crise se tornou rotina — mas a resistência também.
Por Ivo Fernandes
Psicanalista, filósofo, professor e amante da política com ética.
Referências
- CÍCERO.
La Natura degli Dei. Turim: Edizioni Ester, 2018, p. 96s.
- Questão de Filosofia, Vestibular UECE 2025 – 1ª fase.
- BEAUVOIR, Simone de.
O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
- SILVA, Marina.
Marina: A vida por uma causa. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
- SANTOS, Boaventura de Sousa. O fim do império cognitivo: A afirmação das epistemologias do sul. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.